sábado, 15 de março de 2008

VOU PENSAR EM SUICIDAR-ME ...

Samurai suicida.










Encontrei o senhor Vicente depois de sair do túnel e virar para a Ribeira, mesmo à beira do rio.

Há quase dez anos que não o via; desde uma noite em que o ouvi dizer firmemente que se ia suicidar.

Na altura havia diversas pessoas, mas fui o único, que me chamou a atenção, aquela declaração.

Os outros que estavam na reunião, já o conheciam muito melhor que eu e pelo que disseram, logo que ele se retirou, o homem costumava expressar amiúde a sua afinidade para com a determinação e já ninguém acreditava ou sequer prestava atenção.

- Vicente! Recorda-se de mim?

O homem magro, de olhar melancólico e transparente, manteve-se calado e olhou-me de alto a baixo.

Recordei-lhe.

- Conhecemo-nos num jantar em casa do Varela, na noite que …

- Ah!, Sim!. Como está esse pessoal?
- Sinceramente que não sei. Há muito tempo que não os vejo.
- Isso já foi há uns dez anos, disse Vicente e voltou a olhar para o rio escuro.
- Sim, há mais ou menos isso.
- Que coisa, exclamou, como se recorda de mim ao fim de tanto tempo?
- Bem. Naquela noite, você falou em suicídio e isso chamou-me a atenção para …

Vicente, interrompeu o diálogo e soltou uma sonora gargalhada.

- Está claro, você acredita que eu me despeço assim nas reuniões para que os presentes não me esqueçam.
Sorri.

- Não, mas a sua maneira de ser, resultou.

Recordo-me perfeitamente do momento em que se pôs de pé e com toda a seriedade do caso, disse que se retirava, porque se ia matar.

- Sim. E agora está a pensar: este velho é um cretino mentiroso.
- Não. Não penso nada disso.
Você teria as suas razões.
Folgo em saber que mudou de intenções.

Vicente voltou a olhar-me e respondeu-me algo confuso.
- Quem é que lhe disse isso?

Entretanto rodou e põe-se de costas para o rio e de frente para mim.
- Bem, já passaram dez anos.
- Acredita que é assim tão fácil.
Que uma vez disse que ia terminar assim … e irei mesmo.

Já nasci com esse sentimento.

Em pequeno, fui parar ao hospital três vezes por me atirar do berço para o chão.
A minha mãe, muito religiosa, tentou, em vão, inculcar-me a convicção de que este tipo de determinação está nas mãos de Deus.
Com o passar do tempo a vida foi-se complicando e, como dizia, as coisas não são tão simples.

- Estou a compreender.
- Os meus país necessitavam que eu trabalhasse e assim fiz.

Quando morreram num acidente, já pude escolher.
Tranquei todas as portas e abri o gás.
Esvaziei um frasco de comprimidos e acabei com uma garrafa de whisky, que estava pronta para ser aberta só para aquela cerimónia.
Vicente notava que eu o ouvia atentamente, à medida em que o Sol, escondido pelas suas costas, desaparecia no rio.

- Algo correu mal.
Escutou-se uma explosão; deve ter sido o meu maldito costume de fumar, antes de adormecer.
Estive inconsciente mais de seis meses.
Quando abri os olhos, vi-a, quase uma aparição bíblica.
Uma mulher morena, com um sorriso de bonomia e umas mãos macias; muito macias e suaves, como a sua maneira de falar.

Vicente ficou em silêncio um momento.
Acendeu um cigarro e continuou a descrição.

- Era uma enfermeira e disseram-me que me tratou como ninguém o tinha feito, durante todo o tempo.
O certo é que me casei com ela e com ela tive um filho.
Consegui um novo emprego e vivemos mais de cinco anos numa pequena casa que ela fazia parecer grandiosa.

Um dia cansou-se de mim, de me tratar e partiu, levando com ela o filho de ambos.
Não me atrevi a contrariar tudo aquilo, a não ser com uma careta e um franzir das sobrancelhas.

Quando fiquei curado, fui eleito o representante dos meus companheiros no sindicato.
Não podia deixá-los sós.
Procuravam-me, exigindo o impossível e isso foi o pior.
A entidade patronal dizia-me a tudo que sim, os meus companheiros acreditavam que eu era um herói em vez de um simples suicida à procura que me retirassem do jogo.
No final podiam substitui-me, mas já tinham passado mais de cinco anos.
Foi nesse tempo e nessa reunião que nos conhecemos.

Sorri, como o faria um espectador vendo-se entrar no filme que está a assistir.

- Naquela noite cheguei a casa e decidi escrever um bilhete, uma carta.
Um escrito.
Percebe ?

Um suicídio sem deixar uma explicação não serve.
Bem, não importa, a questão é que me lembrei que não havia ninguém na minha vida que lesse essas linhas.
Assim que as escrevi, levei-as a um amigo que há muito não via.
Ele leu-as e pediu-me que lhe desse uns dias.
Não estava tão apressado e angustiado assim que escutei o seu pedido.

Vicente acabou o cigarro e a ponta incandescente, caiu à água, apagando-se na obscuridade da noite que caía.

- Três dias depois, este amigo, chega a minha casa, comentando que o meu texto, uma espécie de testamento imaterial tinha sido lido por um editor que estava vivamente interessado em conhecer-me para poder ampliar as minhas notas para as compilar em livro.

Vicente olhou-me com desânimo e deu um repentino giro, ficando novamente de frente para o rio que já não se distinguia na paisagem nocturna.

- E aqui estou.

- É hoje o dia? Perguntei-lhe com um certo temor.

- Hoje? Hoje não, é impossível.
Amanhã tenho uma reunião na editora … O contrato … Não sei, talvez depois de acabar o meu último livro …

- Formidável. Fico imensamente satisfeito. E você, agora está bem?

- Estou resignado.
Sabe por quê? Estou velho.
Talvez sejamos todos suicidas resignados a que nos surpreenda a norte.

Vicente estendeu a mão, cumprimentou-me e retirou-se com passo tranquilo, bordeando o passeio iluminado, junto do rio, de costas para as luzes que iluminavam a ponte.

Talvez todo o suicida justifique a sua acção, com o medo que causa a possibilidade de que a morte surpreenda alguém.
Pode ser a única eleição de vida que reste a quem a vida nunca o pode eleger.
Talvez tudo erradique na falsa fantasia de que a vida viaja pela rota das grandes decisões e não pelo caminho estreito e empoeirado das pequenas escolhas.

Durante uns minutos, fiquei parado; olhava a sombra do que seria o rio, pois este já não o via, no local exacto onde Vicente, instantes antes tinha estado, talvez a pensar em coisas parecidas.

1 comentário:

Anónimo disse...

muito bom parabens!!!