O que seria da vida sem a desobediência?, perguntou Jean Cocteau (*).
Aos da minha geração custou-lhes manter esse culto, pouco depois dos bombardeios, racionamentos e aclamações, ficava pouco espaço para adorar a nossa senhora da Real Gana.
Recordo que a minha vocação mais decidida foi a de convalescente.
Por desgraça, não a pude cumprir, já que nunca estive doente.
Uma frustração mais.
Ter-me-ia gostado mais, não estar, senão ser convalescente durante todo o meu ciclo vital.
Nesse estado os que te rodeavam estavam obrigados à indulgência, a preocuparem-se contigo e a cercarem-te não só de cuidados, como de diminutivos, falam de "sopitas" ou "sopinhas" e ouves dizer de ti que estás melhorzito.
Inesquecível tifo do pós-guerra.
Nunca me senti, nem mais ameaçado, nem mais amado.
Recordo-me de ouvir os mais velhos daquela deplorável época dizerem que competiam a ver quem matava mais e melhor, porque as crianças de agora têm outras aspirações.
O Instituto de Apoio à Criança, parece-me que perguntou a muitos, recentemente, (entre os 4 e os 17 anos, o que queriam ser, quando fossem grandes).
Levo mais de sessenta anos excluído para participar em inquéritos similares, mas se me perguntassem a mim o que quero ser, a minha resposta está clara, quero ser criança.
Não piloto de corridas, nem ajudante de xerife, nem colaborador do Doc Savage (**), nem companheiro de aventuras de Flash Gordon, nem sequer futebolista da primeira divisão, senão criança.
Com a condição, claro, de não ser órfão.
Agora, parece-me, que as crianças querem ser outra coisa quando chegue o ameaçador dia de amanhã.
Engenheiros electrónicos ou vereadores de urbanismo.
Cada época tem o seu afã.
(*)
Jean Maurice Eugène Cocteau ( 1889 - 1963) foi um cineasta, actor, encenador e autor de teatro francês.
(**)
Doc Savage foi uma personagem fictícia e fabulosa, criada pelo biógrafo, Lester Dent.
Um dos heróis entre 1930 e 1940, também apelidado de Homem de Bronze.
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