Vão passando os anos, como é sua obrigação e chegam as primeiras neves enquanto perguntamos onde estão as antigas.
Tal como ver cair a chuva sempre nos recorda outros aguaceiros, os nevões parecem-nos novos, sobretudo os que vivemos em locais soalheiros.
Onde estão as neves de antanho?
Perguntou François Villon (*), que apesar de ser um ladrão, não se recordava onde havia deixado as coisas.
As primeiras neves caem sempre sobre a "áspera serra e esplêndido Portugal" e dão um resultado que é sempre igual: o trânsito colapsa, como sempre e muitos, muitos ... sempres.
São sempre os mesmos caminhos, os mesmos quilómetros, considerados os mais perigosos e que continuam a ostentar a sua deplorável marca de risco.
A meteorologia é incorrigível, mas quem superintende ao tráfico, tão pouco parece ter conserto.
Os pontos negros, de maior sinistralidade, continuam sendo os que eram, no que não deixa de ser uma forma de tradição e fidelidade.
A neve está sempre amarrada a ele mesma.
Quando chega o calor liberta-se e desenvolve-se melhor.
"Ano de neves, anos de tesouros", dizem os lavradores, que, ainda que saibam poucas coisas, sempre se classificaram como sábios.
Como se pode ir de colapso em colapso, ano após ano na nossa serra?
À mãe natureza, ganharam-se muitas batalhas, se bem que nunca por KO, mas entre nós, isto da neve impedir acessos é a prova dos nove do nosso progresso.
Como o que se não conforma é porque não quer, temos que considerar que pior é o Al Gore.
Ao ilustre cara de pau, há que reconhecer-lhe um notável sentido de oportunidade, já que divulga as profecias dos mestres científicos.
O aumento do nível do mar poderá superar um metro e meio em 2100.
A minha garagem, que só tem livros, será uma piscina e eu navegarei por outras águas.
Quem vier atrás que nade!
(*)
François Villon nasceu em Paris em 1431.
Depois de estudar na Universidade de Paris, esteve envolvido em vários casos de roubo e num episódio em que feriu mortalmente um padre.
Preso várias vezes, chegou a ser condenado à morte, mas teve a pena comutada em banimento da cidade de Paris.
A partir de 1463 não se tem mais notícias dele, não se sabendo o ano de sua morte. A primeira edição de sua obra saiu em 1489.
E dessa obra, vários poemas, seja dos mais líricos seja dos mais sarcásticos, estão entre os mais conhecidos da literatura ocidental.
A sua vida foi a mais estranha das simbioses.
Era triste, mau, alegre, louco, magro e desprezível; um feixe de pele, ossos e fogo. Anguloso, inquieto e nervoso: "Seco e escuro como um cigano", segundo ele próprio.
O lábio superior desfigurado por um golpe de adaga, olhos voltados em furtiva obliquidade para o salto súbito de um possível gendarme escondido na sombra.
Era o mais hábil e vil ladrão de Paris e o maior poeta da França a seu tempo
A chuva nos descrosta e lava, e eis
nos curte o sol o corpo enegrecido;
corvo e pega desolham-nos cruéis,
e barba e sobrancelhas hão comido.
Sentar não nos é nunca consentido;
e cá e lá, ao vento que varia,
e assim em baloiçar-nos só porfia,
mais que dedais bicados nos olhai.
Não sejais pois da nossa confraria;
mas que Deus nos absolva lhe rogai.
(excerto da sua obra)
nos curte o sol o corpo enegrecido;
corvo e pega desolham-nos cruéis,
e barba e sobrancelhas hão comido.
Sentar não nos é nunca consentido;
e cá e lá, ao vento que varia,
e assim em baloiçar-nos só porfia,
mais que dedais bicados nos olhai.
Não sejais pois da nossa confraria;
mas que Deus nos absolva lhe rogai.
(excerto da sua obra)
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