sábado, 26 de abril de 2008

MEMORIAL DE POBRES











Não me digam que não tem mérito, andar um bom par de dias pelo Porto e conseguir não pisar nenhum pobre.

Percorrer ruas autobiográficas, esquinas com encontros impossíveis, cafés onde já não se pode estar á vontade, velhos bairros prateados pela Lua que reluz, mas que já não ilumina como dantes.


Também não é verdade que tudo me parece como se fosse ontem: nota-se que passou muito tempo.


Nos anos 50/60, todos eram muito pobres, mas havia menos pobres.


Agora, na esplendorosa cidade há dezenas ou centenas de "sem tecto" e cerca de uma terça parte dorme na rua.


Sempre me intrigou a pobreza absoluta.


Sei ainda que, não por experiência própria, que é muito difícil ter tudo ou quase tudo o que nos apeteceria possuir, uma grande casa, um grande e bom carro, uma boa conta corrente, mas suspeito que, todavia, é muito mais difícil não ter nada.


Como se pode arranjar alguém para não ter um colchão, uma cadeira e um telhado, ainda que seja com goteiras?


O número de náufragos não pode exceder o dos viajantes e tripulantes dum barco.


Nem o desemprego, nem os problemas familiares, nem a imigração justificam a estatística.


O retrato "robot" do necessitado reflecte, ainda que este tipo de fotografias saiam sempre algo tremidas, um homem, solteiro e de cerca dos quarenta/cinquenta anos mais ou menos.


Geralmente, não só estão mal de dinheiro, como também da cabeça.


García Lorca,
(*), observou e atreveu-se a dizê-lo, que "os pobres são como animais: parece que foram feitos doutra substância".

Agora, quando vier a crise que se está a aproximar, ou que até já chegou a alguns, vão aumentar notavelmente.

Seguem cumprindo uma importantíssima missão: fazer-nos crer que somos bons se os socorremos.

Dar-lhes esmola é o melhor sistema que se inventou para perpetuá-los.

Os outros requerem um esforço maior.


(*)

Federico García Lorca (1898 -1936) foi um poeta e dramaturgo espanhol e uma das primeiras vítimas da Guerra Civil Espanhola.
Perseguido, foi preso a 16 de Agosto e executado a 18.
O seu corpo nunca apareceu).


2 comentários:

mac disse...

Ser pobre é uma coisa, ser sem abrigo é outra, e a sua história é sempre muito parecida: atétTinham uma vida estável a nível financeiro, mas devido às esposas os terem deixado, deixaram-se cair nas malhas da solidão e do degredo.
Agora, muitas vezes o que acontece, é que a Segurança Social tenta ajudá-los, encaminhando-os para um tecto. Muitas vezes é um tecto duma pensão, em que as condições não são as melhores, pensões onde também são abrigados os toxicodependentes, mas acho que estas condições, não sendo sequer as mínimas, são melhores do que viver na rua. E mesmo assim, os sem-abrigo recusam esta ajuda, fugindo destes abrigos e instalando-se novamente na rua.

xistosa, josé torres disse...

mac

Concordo plenamente, mas ser um sem abrigo é ser pobre.
Isto levar-nos-ia a uma discussão filosófica que não domino totalmente, porque não é missão que admire.

É uma paisagem desoladora ... mas há sempre quem substitua um que desapareça, por morte ou por lhe mostrarem o que é a vida.

Todas as cidades têm os seus ...

Eu posso falar, porque há algum tempo fui um voluntário ... ia sendo de "caixão à cova" e a m/mulher pediu-me para abrandar.
Parei ...

Há coisas que a inteligência humana não alcança ... mas a vida continua!