segunda-feira, 8 de outubro de 2007

UM CONTO SIMPLES e INEXISTENTE






O relógio da igreja acabava de deixar ouvir seis badaladas, que correspondiam ás seis da tarde.

A cidade começava a cobrir-se com a obscuridade do horário Outonal.

Seguíamos pelas ruas, sem nos vermos uns aos outros.

Como é habitual acontecer.

Nisto reparo num curioso espectáculo: uma mulher indigente, pelos sinais evidentes, à volta dos quarenta anos, passava a meu lado com um simples blusão de ganga e vários véus por debaixo, de maneira a improvisar uma blusa.

A sua "morenez", não chegava á de cigana, mas poderia ser, da mesma maneira que, lavada e penteada, poderia ser também uma professora, executiva ou funcionária que ia a pensar nas coisas da sua vida.

Chamou-me a atenção, mas passei a seu lado, sem mais nada, a não ser um olhar de lado, não fosse ser injuriado.

Entrei, como tinha planeado, numa confeitaria, perto do meu local de trabalho de projectista.

Do local onde me encontrava vi, que a estranha dama reaparecia, no seu andar, desta vez do outro lado da rua, perto duma esquadra de polícia.

Tirou os véus e lenços para pôr-se nem sei como, pois não terminou de pôr-se.

Não sei porquê, deixei de olhar, embaraçado, talvez por esse pudor " judeu-cristão" que nos persegue muito antes da democracia.

Mas cheguei a ver, com outros mirones, o princípio de uma cena curiosa.

Relativa, visto ninguém ter saído ao ver o improvisado strip-tease, nem ninguém na rua parou para admirar semelhante exibição.

Parece que em toda a vida, à porta duma esquadra de polícia, uma mulher muda a blusa, desnudando-se, ao lado dum punhado de guardas.

Quando saí da confeitaria, não tinha ficado nem rasto da fulana, dos seus escabrosos véus, nem do seu tão extravagante sucesso.

Segui para o escritório e pus-me a fazer um esboço do que havia visto, pois ninguém acreditaria na minha simples descrição.

Depois do esboço, comecei a atentar sobre este mundo que nos rodeia.

Não digo, Deus me livre, porque há que perseguir quem se desnuda em plena rua e em pleno Outono, para não haver gripes e catarros.

Nem tão pouco que seja esta actividade comum, na nossa querida e estranha terra, onde faz tempo em que a notícia não está nas pessoas e muito menos nos sentimentos.

Mas ir-me-ão dizer se, se o que vi, do outro lado da rua, como o puderam ver muitos vizinhos meus, da rua, não tem um pouquito de brincadeira.

Isso de não olhar ao que se passa a meu lado, ou fazê-lo como se fosse algo normal, remete-me, sem remédio, a outra cadeia de strip-tease que vemos, dia após dia, sobretudo, nessa imprescindível caverna informativa que é a televisão e à qual assistimos com impávida frialdade.

Que se um, está misturado não sei com que coisas de tijolos, todo esborrachado; que se o outro está a ganhar milhões aos montes por não sei que requalificações espórtulas; o outro mais além insulta quando descobre uma desistência …; o de mais perto pede com absoluta desfaçatez um espaço para construir um duplex; vamos lá, que o strip-tease desta pobre louca, nada tem a ver com o que todos os dias tomamos ao pequeno almoço, permanecendo tão impassíveis como os viandantes da outra tarde.

O que quero dizer é que já nada nos assusta e que vale tudo.

Prometo que esta história, da mulher revoltosa é verdadeira e não é motivo literário para falar por falar de qualquer coisa, como tenho que fazer, para manter a escrita ociosa em dia, no UCOMETA.

Mas não se enfureçam, nem saiam disparados a correr para ver se ela hoje caminha pela mesma rua.

Alguém me disse no dia seguinte, na mesma confeitaria, que a indigente apanhou uma camioneta da carreira, Porto-Braga, com a viagem paga por alguma alma caridosa.

Dizem que em Braga são mais tolerantes!

Dizem !!!

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